sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Dependência das cores

— É aqui onde se cozinha o açúcar. Vamos agora para a casa de purgar.
Dois homens levavam caçambas com mel batido para as formas estendidas em andaimes com furos. Ali mandava o purgador, um preto, com as mãos metidas na lama suja que cobria a boca das fôrmas. Meu tio explicava como aquele barro preto fazia o açúcar branco. E os tanques de mel-de-furo, com sapos ressequidos por cima de uma borra amarela, deixaram-me uma impressão de nojo. 
( José Lins do Rego.  Menino de Engenho, 34.)

Esta passagem me fez pensar no livro Invisible Man, escrito por Ralph Ellison.  Assim como na fábrica de tintas naquele livro, no engenho, o branco depende muito do preto, tanto em termos da mistura de tons no açúcar quanto em termos da composição racial da força de trabalho.  Porém, o engenho nega essa dependência na apresentação final do seu produto.  A cor de branco não pode existir sem a de preto e vice versa.  O engenho não consegue alcançar seus fins financeiros sem subverter os negros a serviço dos brancos e é através da comparação com os negros que os brancos criam sua própria identidade.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

O presente

Mãos dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
(Carlos Drummond de Andrade)

Muitas pessoas gostam de escapar da realidade através de filmes, livros ou até jogos de MMORPG como "World of Warcraft".  Mas Carlos Drummond de Andrade não vê a necessidade de especular sobre o futuro ou viver num mundo de "entorpecentes" e "serafins" porque, para ele, a realidade basta; é muito maior que qualquer mundo fantástico; é "enorme".  Por meio da repetição da palavra "presente", Andrade ressalta a importância de focalizar na vida atual e nutrir o potencial latente de nossos semelhantes.  Ele está tão fascinado com a vida real que se sente cativado.  A solução não é afastar-nos dos desafios que nos enfrentam, mas sim, trabalhar juntos para melhorar o presente. 

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O mar bêbado

A ONDA
 a onda anda
aonde anda
         a onda?
a onda ainda
ainda onda
ainda anda
         aonde?
aonde?
a onda a onda
(Manuel Bandeira)
Este poema quase parece uma trava-língua por ser tão difícil dizer.  Mas, na verdade, as palavras balançam suavemente como as ondas do mar.  O ritmo da poesia imita uma onda porque tem uma fluidez sonora e repetição de sons. 
Manuel Bandeira rejeitou as formas tradicionais e neste poema ele utiliza palavras simples para melhor alcançar seu propósito.  Na poesia "Poética" ele diz que quer "o lirismo dos bêbados" e ler "A Onda" muitas vezes em voz alta quase produz uma sensação de embriaguez ou pelo menos tontura. 


sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Orações ou Aluguel?

Como eu um dia dissesse a Escobar que lastimava não ter um filho, replicou-me:
— Homem, deixa lá. Deus os dará quando quiser, e se não der nenhum é que os quer para si, e melhor será que fiquem no Céu.
— Uma criança, um filho é o complemento natural da vida.
— Virá, se for necessário.
Não vinha. Capitu pedia-o em suas orações, eu mais de uma vez dava por mim a rezar e a pedi-lo. Já não era como em criança; agora pagava antecipadamente, como os aluguéis da casa. 
(Machado de Assis, Dom Casmurro, 196).

No romance Dom Casmurro, lemos muitas vezes que o protagonista, Bento, tenta negociar com Deus e pagar-lhe com padre-nossos, ave-marias e outras orações.  Em sua juventude, ele sempre promete que vai fazer as orações mas nunca faz.  Na próxima vez, ele tem que prometer mais orações ainda para pagar aquelas que estão atrasados.
Mas Bento mudou bastante durante os anos de adolescente e de adulto.  Ele não é aquele mesmo jovem despreocupado e sem cuidados.  Ele não brinca como brincava antes.  Isso faz uma grande parte da transformação de Bentinho para Dom Casmurro, o homem velho, triste e só.